Admiro como minha mãe sempre disse a verdade sobre tudo desde de sempre. Não é fácil contar para uma criança como os bebês são feitos; porque você não tem a quem entregar a lembrancinha de dias dos pais feita na escola, enquanto todas as suas amigas tem; como o anglicanismo surgiu; ou porque a depressão te faz dormir o dia inteiro. É preciso ter coragem para explicar assuntos que supostamente não competem a crianças, mas é ai que inicia-se o processo de aceitar que nem tudo tem explicação diante da aleatoriedade e do caos da vida.
Morrer é um desses temas espinhosos de adultos dos quais ela nunca me poupou. Quando eu perguntava, era respondida e quando quis visitar o cemitério para ver o que tinha lá, ganhei o meu tour. Tenho vagas memórias de mamãe me levando, quando criança, no cemitério da minha cidade natal, Naviraí, e recordo nitidamente de visitarmos o campo santo da última cidade em que ela morou, Coxim. Na segunda ocasião, eu já era adulta e umas horas após a visita, presenciei uma cena horrorosa: dois cachorros de grande porte que brincavam na rua foram atropelados por uma caminhonete, cujo motorista covardemente fugiu. Eu e outros moradores da rua fomos ao encontro dos pobres animais que gritavam de dor no asfalto. Um deles teve o quadril quebrado instantaneamente e seu testículo foi arrancado com o impacto da batida, o que o levou a morte em menos de 5 minutos. O outro sofreu por alguns minutos, provavelmente em decorrência da coluna quebrada ou de uma hemorragia interna. Já era tarde da noite, a cidade era pequena e não havia para quem pedir socorro. Além do mais, a batida havia sido tão brutal que era impossível aquelas pobres almas sobreviverem. Fiquei ao lado dos cachorros até que morressem, pois achei que mereciam pelo menos uma companhia. Quando a morte finalmente chegou para os dois, os moradores da rua ligaram para sei lá quem, que enviou alguém para recolher os corpos. No outro dia, ainda dava para ver a mancha de sangue e no meio fio. Eu só conseguia pensar que eu fui ao cemitério e acabei encontrando a morte na esquina. Me senti até meio culpada, como se eu pudesse prever aquilo, como se eu tivesse como evitar. Não tinha. E uma coisa não tinha nada a ver com a outra, a minha visita e as mortes eram apenas parte da inexplicabilidade da vida.
Após esse dia, mesmo entendendo racionalmente que visitar o cemitério não chama pela dona morte, não consegui tirar isso da cabeça. Alguns meses depois, talvez um ano, voltei à cidade em que nasci e achei por bem visitar o túmulo dos meus avós que há três anos eu não via. Foi uma experiência particularmente interessante porque eu não me recordava exatamente onde eles estavam, então fui caminhando sob o sol quente e as lápides abarrotadas no chão na direção que eu achava correta. Quando avistei a foto deles na placa em cima do túmulo simples de cimento meu coração acelerou e instantaneamente comecei a chorar. Cheguei perto deles, conversei sobre algumas mágoas, sobre as dificuldades que eu enfrentava naquele momento e sobre o fato de eu ter terminado a faculdade, isso os deixaria muito feliz, especialmente minha avó. Acho que citei como meus primos, que eles conheceram muito pouco ou nada, estão grandes e espertos. Depois disso, fui caminhar pelos corredores de mato alto e sem muita manutenção.
O cemitério de Naviraí está localizado na Avenida Ponta Porã e se chama João Martins Cardoso, em homenagem ao primeiro prefeito eleito no município. O ex-prefeito da cidade foi morto em 2008, aos 75 anos de idade, atropelado por uma moto na Avenida Amélia Fukuda e seu corpo, claro, está enterrado no local que leva seu nome. Não encontrei seu túmulo e para ser sincera, só soube dessa história recentemente, mas assim como ele, outras figuras ilustres da cidade estão sepultadas ali. Queria conhecer mais sobre a história material desse terreno, como ele foi fundado, quem foi o primeiro enterrado, como ele foi abandonado e recuperado… essas coisas, mas não se encontra nada mais aprofundado na internet.
Conforme eu andava por aqueles corredores quietos e abarrotados, vira e mexe esbarrava com o túmulo de alguém que não sabia que tinha partido; com um indivíduo cujo sobrenome era o mesmo de uma certa fulana que estudou comigo no ensino médio; ou com a foto da avó de uma amiga de infância cuja semelhança entre as duas é assustadora. As sepulturas que mais me chamam a atenção são as que selam crianças e bebês, porque esses não viveram nada, ou as que guardam anciões, porque esses viveram de tudo. É claro que a morte de alguém querido, independente da idade, é sempre algo terrível para quem ama, mas parece existir um requinte de crueldade quando perdemos os muitos jovens ou os muito velhos. Os muito moços poderiam crescer, tornar-se médico, advogado, professor; poderia construir uma casa, escrever uma música, aprender uma nova língua, viajar a um país estrangeiro e ver os pais morrerem, não ao contrário. Suponho que não há nada mais triste do que ver alguém nascer e morrer. Os anciões, por outro lado, são museus que viveram as possibilidades que os mortos muito jovens jamais experimentaram, mas que os vivos vão fantasiar sobre. Citei os bebês, mas me referia aos que a data inscrita na lápide indicava um intervalo de tempo entre sua vida e morte, mas e aqueles que não tinham isso? E os natimortos? Como alguém pode nascer morto?
Quando a data do túmulo é recente, você pode dar um Google no nome da pessoa e com frequência descobrirá como ela morreu. Eu fiz isso, em frente a uma lápide de mármore nova que fica perto de um dos portões principais do cemitério, e descobri que o pobre rapaz, um jovem adulto, havia morrido em um acidente de carro na rodovia. É assustador pensar que podemos invadir a “vida” dos mortos em frente a sua permanente residência. Será que já colocaram QR Code nos túmulos?
Morei sozinha muitos anos - ainda moro, de certa forma - e sempre penso como seria morrer em casa. Será que eu ia escorregar, bater a cabeça no chão, desmaiar, sangrar até a morte e ser encontrada dias depois pelos vizinhos por conta do cheiro insuportável? Ou será que eu ia deitar e não acordar mais? Eu teria alguém para me socorrer? Não sei, e suponho que seja besteira pensar nisso porque simplesmente não há como prever.
E você, costuma pensar sobre sua morte?
Em março nos encontramos para falar sobre a contestável atitude de roubar dos mortos.
Fevereiro é um mês que torra minha paciência pelos motivos de: chuva e mormaço. Amanhece aquele calor terrível, de repente começa a ventar, as nuvens ficam escuras e você pensa que o Armagedom finalmente chegou. Cai uma chuva torrencial de entupir esgotos e causar caos no trânsito e como se nada tivesse acontecido, o tempo abre, o sol volta e o mormaço sobe. Quando tem arco íris, é uma vantagem, mas nem sempre.
📺 Série: A primeira temporada de Porque as mulheres matam? conta a história de três famílias que vivem na mesma casa, mas em décadas distintas. As mulheres da família eventualmente cometem assassinados (e isso não é um spoiler, tá, olha o nome da série) por motivos bem peculiares. Vale muito a pena assistir. Disponível no Globo Play.
👁🗨Feed: O perfil da Ana Costa (@annacstt) no Instagram. Ela é psicóloga clínica, estuda e fala sobre a morte de um ponto de vista profissional.
👁🗨Feed: O perfil do Necrotur (@necrotur) promove conteúdo, arte e história sobre diversos cemitérios, principalmente os da cidade de São Paulo.
👂Podcast: O episódio #15 Morte do Podcast Incêndio na Escrivaninha dos colegas escritores de newsletter Thiago (
), Vanessa ( ) e Ana Rusche () é emocionante e promove muita reflexão sobre o tema.💰reclames do plimplim💰
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É isso por hoje, tchau.
Moro sozinho e meus pensamentos são parecidos... ainda mais que uma vez quase morri engasgado e tive amigos que moravam sozinhos e foram encontrados por vizinhos dias depois. Penso em morar nalgum tipo de vila quando estiver mais velho, mas zero garantias que não morro antes disso, né?