Não sei vocês, mas eu acho roubar dos mortos uma atitude infame. Imagine só, você lá dentro do caixão, sua carne se decompondo embaixo da terra quente, os vermes comendo seus olhos e cérebro. De repente alguém rouba as flores que te deixaram, o portão do seu mausoléu ou até mesmo seu próprio corpo. Independente de acreditar ou não em vida após a morte, com certeza é desrespeitoso com os mortos e com os vivos que se importavam com aquele alguém.
Segundo o artigo 212 do Código Penal, o vilipêndio de cadáver ou suas cinzas é um crime que pode acarretar em detenção de até três anos e multa. Vilipendiar um cadáver é submetê-lo a qualquer tipo de humilhação ou ato que, digamos assim, perturbe sua paz. O cadáver não pode ser considerado vítima do crime, visto que ele não é capaz de sentir o ato que lhe é infringido. Portanto o que é lesado é sua memória e/o ou as pessoas que prezam por sua recordação, que são considerados sujeitos passivos do crime. No caso de furto de objetos do cemitério ou de artigos de túmulos específicos, o crime se configura como violação de sepultura, ação prevista no artigo 210.
Uma busca rápida no Google por palavras chaves como “roubo” e “cemitério” e diversas notícias sobre o assunto são encontradas. Porém, a história que me trouxe até aqui é um pouco mais obscura e não é tão fácil assim de encontrar detalhes sobre.
Vamos lá.
O ex-presidente da república, político de carreira e oligarca do Maranhão, José Sarney, coleciona bizarrices e escândalos (palavras generosas dado a proporção dos fatos) em sua vida. Uma das tantas que aprontou em seus 92 anos foi roubar o portão do cemitério de Alcântara, no Maranhão, e colocar na sua mansão à beira da praia em São Luís. Isso mesmo, parece, mas você não leu errado.
No livro Honoráveis Bandidos (2009), o jornalista Palmério Dória cita esse evento:
Quem entra na mansão de Sarney imagina tudo, menos uma residência. Com mania de colecionar anjinhos barrocos e outras antiguidades, chegou a retirar o portão de ferro fundido do cemitério de Alcântara, tombada pelo Patrimônio Histórico, e levar para casa como peça de decoração. Quando o visitou, o ex-presidente socialista de Portugal, Mário Soares, levado à mansão, depois de algum tempo de espera, perguntou a Fernando: “Agora vamos à casa do presidente Sarney?” Pensou que estava num museu. (DÓRIA, 2019, pg. 17).
Alcântara é uma cidade a cerca de 30 km, acessada via barco, de São Luís no Maranhão. Seu conjunto arquitetônico e urbanístico foi tombada como patrimônio nacional pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 1948 e segundo site da organização, o tombamento justifica-se:
[…] pela existência de um importante conjunto da arquitetura colonial luso-brasileira, consolidado durante todo o século XVII. Durante este período, a cidade concentrou - de meados do século XVII até quase o final do século XIX - a aristocracia rural agroexportadora de algodão e viveu um longo período de grande ascensão com a prosperidade econômica de todo o Estado do Maranhão (IPHAN, s.d).

Como se isso não fosse baixo o bastante, Sarney roubou não apenas dos mortos, o que provavelmente poderia ser enquadrado como crime, como também depredou o patrimônio público. Procurei mais informações sobre essa história, inclusive se o portão ainda permanece na sua mansão, mas não encontrei muita coisa. Não sei nem dizer se a mansão ainda é dele, visto que algumas notícias apontam uma possível venda do imóvel.
Embora roube dos mortos, Sarney não gostou muito quando tomaram de volta o terreno que escolheu para seu descanso eterno. Explico: em São Luís há uma construção datada de 1654 conhecida como Convento das Mercês, local tombado como Patrimônio Histórico Nacional e considerado pela Unesco Patrimônio Cultural da Humanidade. Segundo matéria da Folha1, ao final de seu mandato presidencial de 1990, Sarney inaugurou a Fundação José Sarney. Por meio de trambiques com seus aliados, conseguiu com que o Convento das Mercês fosse doado a sua fundação transformando o patrimônio público de grande importância e valor histórico em propriedade particular. Sarney decidiu então que, dentro desse terreno fosse construído um mausoléu em sua homenagem, a inaugurar após sua morte, claro. Felizmente, seus planos foram frustrados já que em 2009 a Justiça decidiu que o Convento deveria ser devolvido ao estado do Maranhão. Assim foi feito, mas a fundação que Sarney criou está instalada no prédio e não surpreendentemente se envolveu em diversos escândalos de desvio de dinheiro além de não ter cumprido o papel de manter a integridade física da construção e de seus acervos.
Em matéria publicada em 2005 no jornal O Imparcial, quando as primeiras notícias sobre a possível devolução do Convento começaram a circular, mas ainda não eram definitivas, Sarney disse que aquilo tratava-se de uma mesquinharia. Hoje, os restos do mausoléu construído pela metade no Convento das Mercês foram finalmente retirados.
Aprendi com o Lendas Urbanas do Domingo Legal, programa apresentado por Gugu Liberato no SBT, que roubar dos mortos é uma má ideia. Esse quadro inesquecível exibia histórias de terror narradas por Gugu. Hoje em dia os episódios podem parecer bem amadores e bobos, mas na época eram assustadoras (passei anos aterrorizada pela Boneca Enfeitiçada).
Entre as histórias esta a Flor de Cemitério. Uma menina que gostava de ir ao cemitério da cidade pegou uma flor de um túmulo e levou para casa (que ideia!). A partir de então, passou a receber ligações constantemente que lhe exigia o retorno do que tinha sido roubado. A pobre garota foi tão atormentada que enlouqueceu.
Aparentemente, roubar dos mortos não é aconselhável, mas aceitar algo que eles te oferecem também não é. A nossa Lorraine Warren brasileira, a paranormal Rosa Maria Jaques do projeto Caça Fantasmas Brasil passou por essa situação e achou melhor declinar o presente. O Caça Fantasmas Brasil é um famoso canal no Youtube, dirigido por Rosa e seu esposo, que investiga manifestações paranormais de todo tipo pelo país utilizando aparelhos de detecção de campo magnético e a mediunidade. Em um dos episódios, Rosa vai até o Cemitério da Consolação em São Paulo e, ao passar por um determinado túmulo, o espírito da pessoa ali enterrada lhe oferece as plantas que adornam sua morada. Rosa não aceita de maneira nenhuma, mesmo após muita insistência.
Curioso, não?
Se você quiser ver esse momento em específico, avance o vídeo para a minutagem 29:27.
Eai, você lembra de mais histórias em que roubar os mortos não foi uma boa ideia? Me conta nos comentários.
Em abril nos encontramos para falar sobre o Cemitério dos Perus.
Se tem uma coisa que me irrita profundamente é comer uva e de repente morder uma semente. Sério! A uva docinha se desfazendo na sua boca e do nada o amargor da semente invade tudo. Sou zero enjoada com comida, mas esse talvez seja meu limite. Me peguei pensando sobre isso esses dias e lembrei - NOSSA! - que sem semente não tem fruta, ou seja, não adianta odiar as coitadas.
Pesquisei brevemente no Google e descobri que as uvas sem sementes são uma mutação genética natural, porém, os cientistas conseguem reproduzir esse processo em laboratório. O que é muito louco em termos tecnológicos, mas também se pensarmos pelo viés da soberania alimentar. Há muitas outras variedades de legumes que são produzidos dessa maneira, assim como sementes que não germinam. Se sem sementes não há como plantar, o que isso te parece? Além do mais, como um pequeno agricultor seria capaz de produzir alimentos dessa maneira?
Não é à toa que existe banco de sementes espalhados por aí, assim como feiras de sementes crioulas. Essas atividades são importantíssimas para preservar a diversidade alimentar e garantir o direito de plantar e produzir comida de qualidade. Na região da minha cidade natal tem duas iniciativas incríveis nesse sentido: o banco de sementes crioulas da Reserva Indígena de Dourados e a Feira de Sementes Crioulas de Juti. E como sempre, são as comunidades indígenas e de pequenos agricultores, ainda que esmagadas pelo agronegócio, resistem e pensam formas de continuar existindo.
📰 Newsletter: A
é uma das newsletter mais legais que eu conheço. Adoro o conteúdo e sempre é uma das mais aguardadas no meu e-mail. Recomendo todos os textos já publicados, mas deixo aqui como sugestão de início um dos que mais me impactaram.📚Literatura: O conto Seis Estrelas do Thiago Ambrósio Lage (da newsletter
) publicado na Escambunáutica. A figura da loira na porta do cemitério pegando táxi está diferente, afinal, se a gente usa Uber, porque os seres do além também não podem? Clica AQUI para ler.📺 Youtube: Esse vídeo da Jout Jout mostra que a morte é um dia que vale a pena viver.
É isso por hoje, tchau.
✨ Leia também minhas outras publicações na Querido Clássico e na resenhas que ninguém pediu! ✨
💰reclames do plimplim💰
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De roubar dos mortos hoje eu não sei, mas lembro de quando descobri que o Egito Antigo é tão antigo que no Egito Antigo existiam ladrões de tumbas do Egito (mais) Antigo!
Sobre as sementes, já ouviu falar da tecnologia terminator? É uma alteração genética que torna as sementes inférteis. Teoricamente é para evitar que a planta geneticamente modificada se reproduza, mas na prática mantém o produtor "refém" da fábrica de sementes. Achei legal você citar isso porque tenho estudado um pouco sobre o assunto pra um projeto de escrita aí. Ah, e obrigado por me recomendar, fico feliz que tenha curtido o conto! :D
Adorei muito o texto, Victória. É muito impressionante como a figura do Sarney sempre vai ganhando contornos ainda mais fantásticos. Suco de Brasil. Obrigado pela indicação!