No início dos anos 1990, o repórter Caco Barcellos investigava mortes causadas pela Polícia Militar (PM) de São Paulo. Parte de sua pesquisa consistia em analisar laudos do Instituto Médico Legal (IML) para compreender quem e em que circunstâncias morriam aqueles assassinados pela PM e por um dos seus mais famosos esquadrões, a ROTA.1
Entre tantos documentos, Caco notou que alguns desses laudos eram marcados por uma letra T em vermelho e tinham sido encaminhados para o IML pelo Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS. O T significava terroristas, denominação dada pela Ditadura Militar brasileira aos guerrilheiros que se opunham e lutavam contra o regime. A maioria desses laudos indicavam que os mortos eram jovens, brancos e tinham sido enterrados no Cemitério Dom Bosco ou como é mais conhecido, Cemitério de Perus. A documentação apontava também, que muitos haviam sido enterrados como indigente ou com o codinome utilizado na organização da qual faziam parte, ainda que seu nome verdadeiro e filiação constassem no laudo do IML. Além das “coincidências” já citadas, tinham como causa da morte tiroteio com órgãos de segurança ou suicídio. Instigado pelos registros encontrados, em poucos dias Caco reuniu os laudos de 158 cadáveres enterrados entre os anos de 1970 e 1974, no Cemitério de Perus, sob as condições citadas.
No Cemitério de Perus, as sepulturas não conferiam com os laudos do IML. Nas covas onde os sujeitos marcados com a letra T deveriam estar enterrados, constavam outros corpos. Os funcionários do cemitério informaram a Caco que após três anos, as ossadas eram exumadas e enterradas no mesmo local, mas em um patamar mais baixo, para que um novo caixão pudesse ser colocado ali ou direcionadas a outro local. O interessante era que nos registros do cemitério constava o enterro e a exumação das ossadas enquanto que a reinumação não foi registrada em local algum. Conversa vai conversa vem, Caco conheceu o então administrador do cemitério, Antônio Pires Eustáquio que confessou ao repórter que as ossadas que ele procurava estavam enterradas em uma vala clandestina, ali mesmo no cemitério, aberta em 1976. Aproximadamente 1.500 pessoas haviam sido exumadas e suas ossadas jogadas em uma vala comum sem nenhum registro, cuidado ou respeito.
Denominar a tal vala como clandestina é importante não apenas por revelar sua natureza, mas também porque demonstra oficialmente que essa vala não existia, ou seja, o Estado não reconhecia esse local. Era como se 1.500 corpos exumados no Cemitério de Perus tivessem simplesmente desaparecido.
A escolha por encaminhar essas pessoas ao Cemitério de Perus e posteriormente após a exumação, enterrá-las em uma vala comum no mesmo local não foi decisão tomada ao acaso. O local foi inaugurado em 1971, pelo então prefeito biônico da cidade de São Paulo, Paulo Maluf, filiado ao ARENA. A ROTA, corporação da Polícia Militar de SP, foi criada durante sua administração e atuou como mais um órgão de repressão a serviço dos militares. Os corpos de indigentes, guerrilheiros ou qualquer cidadão que independente do motivo fosse morto pela violência policial era encaminhado ao Cemitério de Perus a fim de encontrar o silêncio e o esquecimento.
Ainda durante a gestão de Maluf, que foi substituído por outros prefeitos biônicos até o final da Ditadura Militar, a prefeitura de São Paulo estudou a possibilidade de instalar fornos crematórios no Cemitério de Perus. A justificativa era de que a cremação se destinaria principalmente a pessoas encontradas mortas e sem identificação pelas ruas da metrópole a fim de descongestionar os cemitérios. Devido a várias situações, a construção do crematório foi adiada de ano em ano até que finalmente em 1974 o primeiro crematório foi inaugurado na Vila Alpina, ao lado do Cemitério São Pedro. As ossadas referenciadas nos laudos catalogadas por Caco foram exumadas em 1975 e seriam encaminhadas ao crematório. Entretanto, devido a imensa quantidade de material e a difícil logística da tarefa, o plano foi deixado de lado e deu lugar a abertura da vala clandestina.
A Comissão Parlamentar e a Comissão Nacional da Verdade consideraram que o sistema de desaparecimento forçado e ocultação de vítimas foi possível graças ao conluio entre órgãos de repressão, sistema funerário e poder público. Enquanto o monitoramento do sistema era feito pelo SNI, o órgão que promovia a principal conexão entre as várias esferas era o IML, entidade estadual atrelada à Secretaria de Segurança Pública (Sérgio Barbo, 2022, no The Intercept Brasil).
No início da década de 1970, três cemitérios municipais (Cachoeirinha, São Pedro e Perus), quatro particulares e o crematório municipal foram inaugurados em São Paulo. Antes do Cemitério de Perus ser o local escolhido para enterrar aqueles considerados indigentes, esses corpos eram encaminhados ao Cemitério da Vila Formosa, que por sua vez sofreu uma reforma não autorizada, em 1975, que resultou no “sumiço” na quadra dos “terroristas”. Localizado na Zona Leste, o Cemitério do Lajeado enfrentou diversos incêndios que destruíram documentos e matou um funcionário. Como se não bastasse, diversos documentos do IML e do DOPS datados especialmente entre 1969 e 1974 “desapareceram”.
Nos anos 90, quando Caco começou a investigar o caso, a Ditadura Militar já tinha oficialmente acabado, mas a força dos generais e as marcas deixadas por ela ainda eram bastante visíveis, portanto o medo de mexer em um vespeiro como aquele era grande. O próprio Antônio Pires Eustáquio foi ameaçado de morte por ter delatado a existência da vala.
Ainda assim, o repórter continuou sua pesquisa. Localizou e conversou com parentes de desaparecidos políticos que possivelmente estariam enterrados na vala clandestina de Perus. Por meio desses contatos, conseguiu conversar com um encarregado no governo estadual responsável pela administração dos cemitérios e ao contar sua história, conseguiu com que a vala clandestina de Perus fosse aberta. Infelizmente, mas finalmente, os ossos de aproximadamente 1.500 pessoas foram encontrados.
A vala foi aberta oficialmente no dia 04 de setembro de 1990. A prefeita da cidade de São Paulo na época, Luiza Erundina, de esquerda, opositora dos militares e da ditadura, disputou um pleito histórico em um período conturbado e ainda tão próximo dos Anos de Chumbo. No dia seguinte à abertura, Erundina instaurou a Comissão Parlamentar de Inquérito: Desaparecidos Políticos, mais conhecida como CPI de Perus, a primeira comissão legislativa a investigar crimes da ditadura. Sem dúvidas, a administração da prefeitura de SP foi fundamental para garantir que o caso não fosse escondido.
O caso repercutiu, mas a reportagem preparada por Caco Barcellos só foi exibida pela Rede Globo, no programa Globo Repórter, cinco anos após a abertura da vala. Embora a matéria estivesse pronta e mesmo diante do aparente apoio da Rede Globo na produção da reportagem, a emissora optou por não exibi-la logo que ficou pronta. Não encontrei nenhuma fonte que explique o real motivo por trás dessa decisão, mas frente às circunstâncias, deduzo que setores ligados à Ditadura Militar tenham pressionado a emissora de alguma forma.
No ano passado, 32 anos após a abertura da vala, os estudos das ossadas estavam na reta final, mas não sem antes sofrer um último golpe. Sem surpresa alguma, Bolsonaro assinou um decreto, no primeiro ano de seu mandato, 2019, que encerrava o Grupo de Trabalhos Perus ligado a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Também cortou verbas destinadas ao departamento de Antropologia e Arqueologia Forenses da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) onde as análises das ossadas foram realizadas. A pandemia de COVID-19 também paralisou as pesquisas por um período. Como se não bastasse, o prédio que abrigava as instalações do departamento foi vendido e deveria ser desocupado até o meio do ano de 2022. Além da dificuldade em mover todas as ossadas, equipamentos, móveis e documentos do local, esse empecilho atrasa e ameaça a continuidade dos estudos. Não encontrei notícias que informem qual foi o desfecho dessa situação.
Até hoje, 33 anos após a abertura da Vala de Perus, os corpos identificados de presos políticos são de Dimas Casemiro, Aluízio Palhano, Dênis Casemiro, Frederico Eduardo Mayr e Flávio Carvalho Molina. Os crimes que a Ditadura tentou esconder no local se estendem para além daqueles que compunham grupos de oposição ao regime, mas abrange também pessoas vítimas de violência policial, independente do motivo, e as incontáveis histórias vítimas da fome, da miséria e do descaso do poder público.
E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí...
Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo troco
Em maio nos encontramos para falar sobre a ereção post morten de Victor Noir.
No final do ano passado, a empresa em que eu trabalhava fechou e fui demitida. Apesar do desespero que o desemprego trás, confesso que talvez eu nunca tenha sido tão feliz como agora. No fundo, eu estava esperando ansiosamente pelo que aconteceu porque não aguentava mais aquele lugar. Até ai tudo bem. Como o seguro desemprego não vai durar para sempre, eu preciso encontrar um novo trabalho remunerado (já que trabalho sem remuneração eu faço aos montes). E é ai que começa minha revolta. Aquele site famoso que funciona como uma rede social exclusivo para divulgar conquistas profissionais e vagas de emprego é um saco, simplesmente não consigo entender como funciona. Outros espaços na web não ficam atrás: sites confusos, candidaturas que nunca dão uma devolutiva, testes estranhos, requisição de dados sem fim… Antes mesmo da entrevista, se é que essa oportunidade um dia aparecerá, já me sinto cansada e desolada. Fica aqui minha reclamação.
Inclusive, me manda uns jobs? SÉRIO! Pode mandar.
📰 Newsletter: A edição O filme que o Brasil não viu da newsletter
da maravilhosa . A autora discute os acertos e erros do filme Argentina, 1985. A grosso modo, a produção retrata o histórico Julgamento das Juntas, processo civil em que os hermanos julgaram crimes da ditadura militar. A edição foi dividida em duas partes que você pode encontrar aqui e aqui.📰 Newsletter: A fantástica e tocante edição Crônicas alemãs: Vestígios do horror da newsletter
. A autora discorre sobre assuntos delicados e, infelizmente, tão atuais, como nazismo e ditadura.📰 Newsletter: A belíssima edição #29. A preciosa vida humana da newsletter
. A autora, faz uma reflexão emocionante sobre as notícias que trazem a morte.📺 Cinema: Assim como o Brasil, a Argentina enfrentou períodos tenebrosos nas mãos do Regime Militar. O filme A História Oficial (1985) conta a luta por justiça das Mães da Praça de Maio, um movimento políticos de mães em busca dos filhos desaparecidos durante a Ditadura Militar. Esse com certeza é um dos filmes mais emocionantes que eu já assisti. Disponível na Netflix.
📺 Cinema: Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava é um documentário brasileiro de 2017 da diretora Fernanda Pessoa. Através de um copilado de filmes da pornochanchada, Fernanda Pessoa demonstra como o gênero contou, ainda que pareça improvável, como a Ditadura Militar atuou no país. Disponível na Globo Play.
É isso por hoje, tchau.
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💰reclames do plimplim💰
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A fonte principal da minha pesquisa foi o site Memórias da Ditadura na sessão especial sobre a Vala de Perus.